"Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali", de Paulo Daniel Farah


A obra reúne a tradução anotada e o estudo de um manuscrito do século XIX sobre a estada do imã bagdali Abdurrahmán al-Baghdádi no Brasil. Após chegar a bordo de um navio do Império otomano, morou no Rio de Janeiro, em Salvador e Recife ao longo de três anos, de 1865 a 1868.

Redigido em caracteres árabes, o manuscrito contém temos em árabe, turco otomano, persa, francês, português e tupi. Perdido por mais de um século e posteriormente localizado pelo autor desta obra analítica em Istambul e Berlim, constitui o principal documento acerca da situação dos muçulmanos no Brasil no século XIX, especialmente após o levante dos malês (1835). Trata-se também do único registro até agora conhecido de um olhar árabe - e muçulmano - sobre a paisagem tropical e a sociedade multiétnica e multiconfessional que se formava à época no Brasil.

No manuscrito, o imã discorre ainda sobre a fauna, a flora, as tradições e as populações brasileiras sob o prisma de um erudito. A obra agora co-editada pelas Bibliotecas Nacionais de Argel, de Caracas e do Rio de Janeiro como o primeiro volume da BibliASPA - Biblioteca América do Sul-Países Árabes, reproduz todo o manuscrito original. Inteiramente trilìngüe, em árabe, português e espanhol, faz-se introduzir por textos de análise e comentário e possui um caderno de imagens do século XIX.


Paulo Farah

Cartografia Literária


Encontros mapeiam as experiências literárias que surgem nos diferentes cantos da cidade.
Todas as quintas, às 19h30, no SESC Consolação.

1º Encontro de Gerações, no Museu Afro Brasil

O Projeto Negras Palavras leva debates sobre teatro, música e literatura ao Museu Afro Brasil em quatro sábados. Paulo Lins, Rappin' Hood e Paulinho da Viola são alguns dos convidados. A entrada é franca.



Mais informações no site www.museuafrobrasil.com.br

Deni é o tipo de pessoa de quem só se pode falar bem


Deni é uma adorável, amiga, doce, inteligente e companheira baiana de Abaíra. Seu nome completo é Deni Ribeiro Prado; é filha do Sr. Milton Prado e Sra. Elza Martins Ribeiro Prado.

Nasceu por volta das 5h00 de parto normal, em casa. Quando a parteira chegou, já havia nascido. Diz sua mãe que ela era tão pequenina que cabia numa caixa de sapato e que o sapato da bonequinha de sua irmã mais velha lhe caía do pé.

Veio para São Paulo no mês de carnaval, com apenas 3 anos. Sua mãe esperava o quinto filho. Um faleceu, e seu irmãozinho nasceu em março, e logo viria outro, ficando uma grande e linda família: Papai, Mamãe, Delvita, Dinalva, Deni, Demilson e Denise.

Deni contou-me como seus pais se conheceram num baile da cidade; que o Sr. Milton foi o primeiro namorado da Sra. Eliza, se bem que ela teve uns outros namoricos depois, mas era ele, o escolhido, com quem se casou com apenas 19 anos; e que em menos de um ano de casada deu à luz o primeiro bebê. Como o pai sempre vinha e voltava a São Paulo, teve uma gravidez seguida da outra. Por ser muito tímida, foi só isso que a mãe contou à filha.

Foi interessante também ouvir Deni falar sobre sua avó, pessoa de muita sabedoria, que sabe fazer reza contra mau olhado, quebranto, e que conhece vários remédios caseiros. Uma senhora de comportamento “seco” que teve 14 filhos, treze ainda vivos, e que conta histórias da cultura popular – o “jeito seco” pode-se pensar ser da criação de sua época.

Tristemente revela que há pouco tempo perdeu o avô, e não mais falou sobre a família.

Mudando completamente de assunto, Deni conta que estudou em escola pública, e que naquela época sua mãe, que sempre ajudou nas despesas da casa, lavava roupa para fora e fazia faxinas, frisando aos filhos a importância dos estudos: “Estudem pra não lavar os banheiros dos outros.” Na sua simplicidade, quanta sabedoria... Mas viciou minha amiga, que até hoje está sempre estudando alguma coisa.

Com a vida difícil, Deni começou a trabalhar cedo, aos 14 anos, em um supermercado. Fazia curso de inglês e computação.

Estudou muito e anos mais tarde, passou no concurso dos Correios. Iniciou então a faculdade de Estudos Sociais. Ao se formar, prestou concurso para professora do Estado e passou, deixou os Correios. Passados dois anos, passou também no concurso para professora da Prefeitura de São Paulo. Hoje trabalha 60 horas semanais na escola, fora as horas trabalhadas em casa, corrigindo trabalhos e preparando aulas e atividades.

Dá até pra entender porque está tão questionadora em relação ao sistema de ensino e principalmente ao reconhecimento social da profissão quando revelou a frase que ouviu de uma mãe a seu filho no dia da reunião de pais: “Respeite sua professora porque ela não teve como escolher algo melhor”. E finalizou sua história ao comentar: “Isso me deixou muito triste, pois eu tenho a certeza de que eu escolhi essa profissão”.

Quem a conhece, trabalha com ela, a vê como uma lutadora, que apesar de angustiada com a situação do ensino e da posição do professor na sociedade, acredita no que faz, e faz bem feito.

Sendo colaboradora e conciliadora em qualquer grupo, tem sempre uma palavra doce e amigável a dizer. Mesmo quando está dando uma bronca ou fazendo um comentário repreensivo, é muito amável. É o tipo de pessoa de quem só se pode falar bem.



Por Simone Francischetti

A minha Totonha


"... Quero dizer que eu tenho a minha Totonha (todos nós temos,é só se esforçar para lembrar), minha mãe contava-me suas histórias do interior de Minas Gerais como se voltasse a viver aqueles momentos.Entre risos e choro ela falava de seus costumes da infância e do trabalho no canavial. Ela era como uma escrava branca do engenho da narrativa de José Lins.

Embora hoje em dia essas histórias tenham se cessado junto com a minha infância, eu não me esqueço do brilho de seus olhos, que deviam na certa,estar a refletir os meus.

Ah! Já ia me esquecer do que até hoje ela diz: 'Com os momentos bons, a gente tem que ficar feliz e com os momentos ruins, a gente tem que ficar ainda mais feliz, por os termos superado'."


Leila Castro

"Nossos passos vêm de longe"...


Provavelmente tenham começado com Luzia e continuaram com Theodosina Rosário Ribeiro, Claudete Alves, Jurema Batista, Francisca Trindade, Benedita da Silva, Telma de Souza, Marina Silva, Lélia González, Maria Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Zezé Mota, Elisa Lucinda, Via Negromonte, Sandra de Sá, Alcione, Watusi, Rosa Maria, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, Eliana Pitman, Clara Nunes, Alaíde Costa, Leny Andrade, Elza Soares, Dolores Duran, Aracy de Almeida, Ivone Lara, Chica Xavier, Neuza Borges, Ruth de Souza, Pinah, Margarete Menezes, Daúde, Paula Lima, Virgínia Rosa, Mart’nália, Luciana Mello, Matilde Ribeiro e centenas, talvez milhares de outras comprometidas e unidas na luta em tantos coletivos de mulheres negras pelo Brasil inteiro. Tantas outras não citadas, porém igualmente atuantes e importantes. Nós. Continua conosco.

O último dia do nosso curso - espero que seja nosso primeiro de muitos outros cursos - foi maravilhoso.

Eu havia passado uma semana de muitos problemas de saúde e ainda não me sentia muito bem, mas ao menos durante aquelas horas eu estive curada. Até comi acarajé. Quente...

Em algum momento conversávamos - Nilda, Neide e eu - sobre mulheres negras e a falta de “quadro” de que sofremos. Naquele momento me lembrei do maravilhoso livro que estava comigo já há algumas semanas, emprestado por um amigo, e que é simplesmente um documento e tanto sobre este tema.

Mulheres negras do Brasil. O livro faz parte do projeto Mulher, 500 anos atrás dos panos e apresenta inúmeras experiências das mulheres negras e sua participação no processo histórico, social, político e cultural do nosso país.

Nem comentei nada. Fiquei com vergonha. De novo a vergonha por ter separado tantos materiais, lido alguns e ainda não ter escrito nenhuma linha a respeito. Meu diário de leituras e descobertas ainda permanecia em branco... Decidi, naquele momento, que iniciaria por aí. Por este livro maravilhoso por suas palavras e imagens.

Consegui. Comecei. As palavras iniciais deste texto foram baseadas em uma leitura inspiradora da mencionada obra, apesar de bastante dinâmica e transversal.

Fiquei muito feliz. Como está escrito, há centenas, talvez milhares de outros nomes que não foram citados. Nós temos quadro sim, Nilda. Fique tranqüila. Podemos “estar por nossa própria conta”, mas não estamos sozinhas.

Ana Paula Ribeiro


Schumaher, Schuma; Brazil, Érico Vital. Mulheres negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007.

A história que virou história


Você viu o que duas melancias causaram?

Emoções, enredos, risos...!!! Essa é a história que ouvimos por vários encontros. O que eram duas moças redondinhas como as melancias, amigas para estarem juntas a qualquer momento, vencendo as tristezas, preconceitos e vivendo todos os momentos de muita felicidade, passou a ser ponto de partida para muitas outras histórias. E nessa, nem as sementes da melancia escaparam!


Juvenal Domingues

Tudo o que você podia ser


"Nosso maior medo não é o de sermos inadequados. Nosso maior medo é de sermos poderosos demais. O que nos assusta não é o nosso lado sombrio e sim a nossa própria luz.
Perguntamo-nos quem somos nós para sermos brilhantes, lindos, talentosos e fabulosos?
Na verdade, quem somos nós para não o sermos? Somos filhos de Deus.
Diminuir-se a si mesmo não torna o mundo melhor. Não há nada que “iluminado” em se diminuir para que outras pessoas não se sintam inseguras.
Nascemos para ser uma manifestação da glória de Deus.
Não apenas alguns de nós, mas todos nós.
Ao deixarmos a nossa luz brilhar, damos inconscientemente aos outros a permissão de fazer o mesmo.
Ao nos libertarmos do nosso medo, nossa presença automaticamente libera os outros".


Nelson Mandela
Discurso Presidencial de posse, 1994.

Binhografia inacabada

- ?
Ainda não sei quem sou
Mas o meu nome me chama de Robinson
Que diz que quer dizer filho de Robin
Embora meu pai se chamasse Joaquim
- ?
- Meu apelido vem da forma carinhosa dimãenutiva
Quando ela me chamava do campinho que ficava em frente da nossa casa
O qual era minha primeira casa até a luz do dia fugir inteira
- Robiiiiiiiiiinho, mãe chamava, nas horas dela, d'eu vir para dentro
- E eu tardava em retornar, do estádio mais saudoso que o Morumbi não viu
E o eco desse Binho ficou lá, parado no meio daquele chamamento de minha mãe
Naquele campinho de gols, de gol a gol; quando havia poucos para tratar de bola,
Naquele que era o nosso , que os buracos eram nossos, de poças rasas; mas profundas na memória, que quando chovia era uma festa de sujação, mães e mãos bravas
nos tanques, por isso era melhor jogar as peladas quase pelados, bolas de capotão
E quem era o capitão? Nem existia isso não, e o jogo era jogado, ganhado ou perdido às regras nossas, fifas nenhumas, muitos chapéus, poucos bonés, nenhum cartola.
Aquele campinho que ganhei um prego no pé, e que quase me tetanei
Aquele de correrias, pega-pegas cambalhotas e pipas, poucas pipas muitas bolas
Aquele que mil gols eu fiz sem Romário existir, e que Pelé eu vi, nos braços de minha mãe, mas dentro do Morumbi
Aquele de gandulas; de quem ficava para próximo; em dias mais concorridos ou férias, tínhamos pressa, tempo era gol
Aquele de goleiros frangueiros, posição pouco aceita e despopularizada entre nós, época que a seleção atacava e os artilheiros estavam em alta, ficar no gol era quase que uma punição, e poucos se prestavam a agarrar as bolas, a posição era disputada no “dois ou um”, e ser artilheiro nesses casos, uma obrigação
Aquele campinho de galinhas e seus pintinhos que ciscavam por ali, e que vez ou outra uma bola perdida depenava um futuro frango
Que no primeiro tempo era uma descida, e no segundo uma subida, quando havia tempos
De traves feitas do que dava, sem redes, de muitos gols duvidáveis mas inexplicáveis
Formidáveis, goláveis
Aquele campinho, de onde todos saíram vitoriosos, e que nunca nenhum ser humano amanheceu morto por ali
Tempos que não cuidavam dessas desovas
Aí vieram o asfalto, os carrinhos de rolimãs, carros carros carros, os prédios, todos os bancos, as delegacias, os puteiros e as casas Bahia
E o campinho também se transformou
Hoje, ele é apenas um desmanche de carros depenados e apreendidos pela 37ª DP
Aquele campinho não existe mais, eu sei
Mas insiste ainda em mim


Robinson Padial (Binho)

Cheiro de goiaba


Foto: Sakurai Midori


O cheiro de café, do feijão, de torresmo e banana frita me levam numa viagem no tempo que até hoje eu não consegui descrever. São momentos que me fazem recordar a união de minha família. Os laços familiares são correntes da sobrevivência. Ninguém, nenhum homem é uma ilha.

Nunca poderia imaginar que falar de comida e afetividade resultasse num processo de imersão tão grande em minha vida. Entre tantos relatos bonitos, ligados à infância e comida, talvez o meu não seja tão feliz assim. Mas é tão importante quanto. Sou o que sou por ser o que éramos. Nós éramos uma dezena.

Dona Coracy era uma senhora muito simpática e doce. Na descrição rural, ela seria uma verdadeira galinha apanhadeira, pois sempre estava entre seus pintinhos. Dez filhos e uma casa para terminar.

Meu pai finalizou o básico no auge de seus quarenta e faltando uma perna, perdida por acidente de trabalho – história essa que a família, automaticamente, apagou. Eu tinha nove meses. Cresci sem pai. Que coisa!

Com a morte de meu pai, passamos a ser nove caixas de saída e nenhuma caixa de entrada. Com a caridade de poucos vizinhos, e alguns bens deixados pelo meu pai, fomos recebendo doações e vendendo: coelhos, charretes, cavalos... Até ficar com quase nada de criação. Restava apenas vender verduras – chuchu. Até ficar com quase nada. A casa já estava “quase” terminada. Muitos quartos, uma grande cozinha e um quintal a perder de vista.

Com a morte de mais dois irmãos, ainda pequenos, Manoel Emílio e Marcelo, fiquei aos cuidados das minhas irmãs mais velhas e minha mãe começou a lavar roupa para fora. O dinheiro não dava. Passou a trabalhar como doméstica na capital. Quando chegava o domingo, logo pela manhã, eu entrava debaixo da mesa para minha mãe chegar logo. Superstição, mas dava certo. Bastava eu me agachar e o trinco da porta fazia um barulhinho. Mesmo com tanta coisa para fazer, como era bom ver aquela figura materna entrando pela porta adentro! Meu coração parecia explodir de tanta alegria. Ah, seu cheiro. Como é bom cheiro de mãe!

Agora, éramos sete. Com a família um pouco menor, poderia se pensar que as coisas iriam melhorar. Pôr os filhos de quatro e cinco anos para trabalhar era sinônimo de melhoria. Pois bem, estávamos melhorando. Todas domésticas e carregadores de caixas em feiras livres.

O quintal

Com o cerco da ditadura, mulheres, feministas e articuladas, minha irmã mais velha (que considero minha segunda mãe) precisou ir para Portugal. Política. A nossa salvação, por um bom tempo, no entanto, durou pouco. Minha mãe não sabia como trocar o dinheiro, aí, mais uma vez fomos enganados. Mais uma vez. O dinheiro era trocado por uma ninharia que mal dava para passarmos o mês.

O quintal foi a nossa verdadeira salvação. Nele eu tinha o meu mundo. Aos sete anos de idade, conheci verdadeiramente a fome. E confesso, não a achei bonita. Pretendo pular essa parte. São veias que não quero mais mexer.

Mas narro aqui o que realmente interessa: o milagre das goiabas. Com um vasto quintal, na época mais difícil da história de Campinas, tirávamos dali todo o nosso sustento. Mandioca, frutas variadas, verduras. Mas a goiabeira foi uma grande mãe. Tínhamos dois tipos no quintal: a branca e a vermelha. No entanto a vermelha, parecendo sentir a situação precária que passávamos, por um longo período, dava o ano inteiro. Como deu.

Essa goiabeira foi o nosso parquinho, brincávamos nela sempre que acabávamos de fazer nossos deveres, diga-se de passagem “domésticos” e escolares. Xingávamos até na hora de varrer aquele imenso quintal cheio de folhas, abelhas e formigas, por conta das goiabas caídas no chão. Era uma história de amor e ódio, um verdadeiro paradoxo.

O milagre

Em toda minha vida só vi minha mãe chorar uma vez. Na morte de minha irmã Marisa. Naquela época eu já estava com 23 anos. Sendo assim, na minha infância, nunca vi minha mãe chorar. Não na minha frente, pois hoje que sou mãe, sei que elas choram... E como!

Quando eu conheci a fome, eu fui apresentada aos milagres que uma mãe preta é capaz de fazer não tendo nada. Já vivi um mês inteiro à base de goiaba. Estudava de manhã e o meu café da manhã era o pão de minuto – feito com fubá, pois a farinha era cara, banha de porco e sal com uma pequena pitada de açúcar [1]. Minha mãe fazia uma geléia da polpa da goiaba com açúcar preto – mascavo, naquela época açúcar de pobre – e misturava no leite quente. Era um verdadeiro achocolatado, só que de goiaba. Um agoiabado! Perdão pelo neologismo, mas eu não resisti!

No almoço, quando não era salada de goiaba, era macarrão – feito em casa – com molho de goiaba. Carne? Carne! O que é isso? Nem nossos coelhos nós comíamos, de dó. E as galinhas, todas com nome, só iam para panela quando alguém ficava doente. Muito doente mesmo! Eu me lembro de uma de minhas irmãs dizerem: “Que menina de sorte, vai comer canja hoje”. Acho que é por isso que sempre a mesma ficava doente.

O jantar, sempre uma polenta com um molho – rosa – de goiaba ou sopa de fubá com couve. Santa couve. Como eu te comi! Tudo, hoje, referente ao fubá, o máximo que consigo comer é polenta com frango caipira. Se colocar um prato de sopa de fubá na minha frente, eu saio correndo, e se for com couve, vixe!!!

Tínhamos o hábito da ceia. Era religioso antes de dormir cearmos. Tínhamos no cardápio o bolo de fubá e café com leite. Nas marés baixas, era broa de fubá, goiabada cascão e chá de erva cidreira.

Enfim, aquela mulher, arcada pelo peso das trouxas de roupas, realizava na cozinha verdadeiros milagres. Tínhamos manga, banana, mexerica, limão, laranja e limão galego, mas era nas goiabas que mantínhamos a base alimentar da casa.

“Seiscentas calorias, rica em vitamina C e eliminadora dos radicais livres, ou seja, anti-envelhecimento...”

O único arrimo de família, meu irmão Mário, foi minha figura paterna até a adolescência. Envelhecido pelas responsabilidades e acanhado por viver no meio de tantas mulheres, minha mãe nunca escondeu, ou sequer disfarçou, a paixão que tem por ele. Podemos dizer que ele, apesar de seu ostracismo, é o filho perfeito. Mas com a idade e a escola do mundo descobri que ninguém é perfeito.

As égides de minha vida foram as demoradas conversas que tinha com o meu pai. Não me lembro quando isso começou, mas em momentos críticos de tristeza, fome e solidão, eu batia altos papos com o meu velho. Depois de uma longa conversa eu criava forças para uma nova jornada. Sempre perguntava como seria minha vida se meu pai estivesse vivo. Eu queria loucamente ter um pai.

Todos me olhavam de soslaio. Tinham um olhar de piedade. Mas no fundo, no fundo, eu deveria mesmo é ser um fardo para eles. Eu era a única que dependia deles para tudo. Todos moços, trabalhando e eu agachada pelos cantos da casa, secando de saudades de minha mãe.

Com o passar dos anos a família foi cindida. A cada falecimento, a cada partida eu me partia. Minha identidade se perdia. Mas uma vez me encontrava sozinha.

Tínhamos uma vida espartana. Matávamos, ou melhor, meus irmãos matavam um leão por dia. Hoje choro com os relatos de meus alunos. Re-visito minha história, toda vez, quando leio as suas.


Por Márcia Adão


[1] Não se preocupem, darei as receitas.

A porrada e o suco de maracujá


Um belo dia de sol eu e todos os meus amigos estávamos brincando como fazíamos todos os dias, afinal tínhamos um campinho para jogarmos futebol, bolinha de gude, rodar peão, andar de bicicleta, soltar pipa etc.

O campo parecia mais um parque que tentávamos aproveitar o máximo possível, afinal criança gosta de espaço para correr, chutar, gritar e fazer todas as coisas que queriam.

Em um belo dia, brincando no campinho, correndo pra lá e pra cá e faminto como sempre, vem um rapaz mais velho com uma lata de linha e uma pipa no alto. O nome dele é inesquecível. Era o GETÚLIO, rapaz mais velho que sempre soltava pipa com todos os garotos. Mas esse dia foi especial, pois Getúlio sabia do que eu gostava. Não era pipa, peão, linha, bolinha de gude, não; era algo com uma cor diferente e que dizem que nos acalma; era algo inigualável chamado de suco de maracujá.

É isso mesmo, suco de maracujá!

O Getúlio lembrando disso me fez uma proposta tentadora, ele me prometeu um copo grande com suco de maracujá e uma pipa também muito grande e colorida - tudo que qualquer menino queria. Só que a tarefa não era agradável. Porém, não me pareceu tão difícil. Eu tinha apenas que dar um murro no nariz de um amigo, afinal, um amigo não se incomodaria de ajudar um outro amigo, né! O nome dele era JORJINES.

Era algo muito simples: um murro no nariz dele e todo mundo ficaria feliz. Uns mais e outros menos, mas ficaríamos todos felizes. Após pensar durante um breve momento aceitei a proposta: era só uma porrada e eu nem batia tão forte.

Então comecei a tentar convencer o meu amigo a me deixar dar um soco, ou melhor, um pequeno soquinho. Algo leve, doeria só um pouquinho e até estava disposto a dividir o prêmio com ele, a pipa e o suco. Achei justo, mas, infelizmente, a justiça é vista de formas diferentes e sempre beneficiava alguém, e esse alguém no momento era eu.

Já que não consegui pelo jeito fácil, tive que partir para o jeito mais difícil, ou seja, tentar dar o soco sem a permissão do dono do nariz, afinal era uma pipa e um copo enorme com suco de maracujá.

Comecei a tentar acertar um soco e Jorjines nessa altura do campeonato falava:

- Lula, não faz isso, ele quer que nós briguemos.
- Vem cá para eu dar um murro no seu nariz! Eu respondia.

Depois de algumas tentativas, finalmente depois de vários golpes o nariz foi acertado. Só tinha um pequeno problema: o nariz não foi de meu amigo e sim o meu. Que ironia, tentei dar um soco e acabei levando um contra golpe! Aquele garoto que dizia ser meu amigo me deu um soco no meu nariz! Pior do que sentir a dor foi ver o meu nariz sangrando, durante algum tempo. Totalmente tomado pela ira que jorrava pelas minhas narinas, comecei a correr atrás dele, mas era inútil, então decidi ir para casa lavar o rosto.

Cheguei a casa encontrei a ENI, a filha do dono do quintal, onde morávamos. Ela me ajudou a lavar o rosto e depois fui dormir. É isso mesmo, fui dormir porque minha mãe não gostava de brigas e eu sabia que ela tinha dó de me acordar. Então dormir era a solução para que ela não me batesse, afinal já tinha apanhado na rua, não seria justo apanhar duas vezes. Mas desta vez a tática do sono não funcionou, minha mãe me acordou com uns bons tabefes.

Também, quem mandou trocar uma amizade por um copo de suco de maracujá.


Por Luiz Rodrigues dos Santos Neto

Brincadeira de Criança

- "Vocês vão se machucar"!

Comentário de mãe não se discute! Foi assim que teve início esse conto, ou melhor este tombo.

Estava meu irmão e eu brincando de cabra-cega na área de minha casa, as dicas para caminhar por aquele percurso estava acontecendo; "escada, desvia" etc., até que veio a dica - "cuidado o buraco". Acreditava que ele me conduzia a um desvio, mas não foi o aconteceu.

Eu caí no primeiro degrau, meu irmão desceu rolando e eu gritava:

- Pára, pára - como se fosse possível segurar com a fala, o restante do tombo.

Minha preocupação era que não ocorresse o pior com ele, afinal era menor que eu!!! Mas nada disso foi possível prever, afinal o cuidado terminou quando a brincadeira terminou no tombo.

Lembra do aviso de mãe? Quando mãe fala tudo acontece.


Por Deni R. Prado, 23/05/07

Cuidado com o Gordo que o Gordo te pega!

Era uma pacata rua de periferia como outra qualquer. Crianças
brincando pela rua, jogando bola, amarelinha, pião, bolinha de gude,
pipa, enfim todas aquelas delícias de brincadeiras da infância.
Havia nesta rua uma família no mínimo excêntrica. A mãe, Dona Zilda,
um amor de pessoa, ajudou muito minha mãe nos dias difíceis. Ela fazia
a feira para sua casa e sempre levava umas coisinhas pra minha mãe.
Fazia bolos confeitados , coloridos, com aquelas pedrinhas de açucar
que pareciam vidro. Eu adorava.
Ela teve três filhos, assim como a minha mãe, só que os dela eram
todos homens. Eles tinham nomes bem diferentes: Newton, Shalton e
Washington, que para a molecada da rua se transformaram em Nilton,
Joaquinzinho e Chitão.
Eram bons meninos, mas muito tristes. Apesar de todo o carinho que
recebiam de sua mãe, seu pai, Seu Joaquim, aquele homem gordo e
bigodudo, era muito bravo. Não permitia que seus filhos brincassem na
rua. Lembro-me bem de suas carinhas na grade do portão nos espiando as
brincadeiras. Eu morria de dó e muitas vezes ficava do outro lado
brincando com eles.
Às vezes, dona Zilda corria o risco desafiando o marido e soltava os
meninos na rua , antes que ele chegasse do trabalho. Era uma alegria
para aqueles meninos; eles queriam correr, queriam aproveitar cada
minuto.
Todas as crianças da rua tinham medo do Seu Joaquim. Ele tinha um
vozeirão de arrepiar, tinha um bigode que parecia o do Zorro, mas a
barriga o fazia parecer o sargento Garcia. Nós o chamávamos de "O
gordo".
Quando jogávamos bola e ela caía no seu quintal, tínhamos que torcer
pra ele não a achar antes dos meninos, do contrário, lá se ía mais uma
bola. Ele passava a faca e devolvia pra rua, quanta maldade!
Para a maioria das crianças da rua, entrar naquela casa era um
desafio. Num bairro de periferia, geralmente as crianças tomam conta,
invadem as casas dos amigos, comem pão, bolo, o que tiver pela frente.
Naquela casa isso não acontecia. Eu era uma exceção: Dona Zilda me
adorava, dizia que eu ia me casar com o caçula, o Joaquinzinho
(Shalton), ela fazia coisas deliciosas e eu a ajudava a varrer a casa.
Todas as crianças me rodeavam pra saber o que eu estava fazendo lá
dentro da casa do Gordo.
Havia uma época do ano em que as crianças podiam entrar lá. Não me
recordo em que mês, acho que na época do calor, apareciam as
tanajuras, conhecida por alguns como Içá. Seu Joaquim adorava comer
bunda de tanajura frita, que nojo!
Como ele era muito gordo, tinha dificuldades pra pegá-las, então ele
pagava pra molecada pegar. Cada um arrumava uma latinha vazia e saia
pela rua, pegando tanajura, mas tinha que ser daquelas bem bundudas.
Para nós, crianças, era uma festa. Além da farra atrás dos bichinhos,
ganhávamos umas moedinhas e ainda por cima tínhamos a chance de entrar
na casa do Gordo.
No final, ele fritava as bundas das tanajuras e comia com farinha.
Aquele cheiro se espalhava por toda a vizinhança, era horrível.
Dona Zilda morreu muito nova, 33 anos, de derrame. Foi uma tristeza
danada, me lembro de ter sido meu primeiro contato com a dor da morte.
Seu Joaquim se casou logo, já tinha outra esposa na manga e os meninos
ficaram ainda mais tristes.
Esta é uma das histórias da minha infãncia. Poucas vezes depois disso
senti o cheiro de bunda de tanajura frita, nem sei se elas ainda
existem, mas é um cheiro que se eu sentir em qualquer lugar vou saber
identificar.

Por Suzi Aguiar Soares, 24/05/07

Campo Limpo Taboão

Quando nasci, tinha seis anos.
No lugar em que nasci,
Sonhava que tudo era nosso.
Tinha os campinhos e os terrenos baldios.
Era meu território.
Já foi interior,
Hoje periferia com as casas cruas.
As vacas com tetas gruas
Não existem mais.
A cerca virou muro. Óbvio.
A cidade cresce,
O muro cresce.
Vieram os prédios, as delegacias, os puteiros
e as Casas Bahia.
Também cresci
Fiquei grande.
Já não caibo dentro de mim
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho.
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho.

por Binho (Robinson Padial), 24/05/2007

O contador de histórias


Ahmad era carpinteiro, ofício que aprendera com seu pai. Fascinado pela leitura, certo dia viu entre suas mãos um livro que relatava as peripécias de Antar bin Chaddád, grande herói e poeta da célebre tribo árabe dos Bani Abas. Os contos o cativaram tanto que ele os lia diversas vezes ao dia ao ponto de, pouco tempo depois, saber recitá-los de cor. Também veio a vontade de contá-los em público para que outras pessoas pudessem desfrutar do prazer que sentia ao ouvir as aventuras de Antara.

Certa noite, no café an-Nawfara, aonde ele costumava ir todas as noites após o trabalho, Ahmad percebeu que o dono do local estava angustiado porque o contador de histórias da casa partira de manhã, rumo a Maalula, uma cidade na Síria onde ainda se fala a língua de Cristo (o aramaico). Ele precisa resolver algumas pendências familiares e talvez demorasse bastante para voltar.

Quando Ahmad propôs ao proprietário do café que ele substituísse o contador de histórias recém-sumido, Khaled aceitou na hora. De fato, ele não tinha escolha. Como poderia explicar aos clientes que vinham todas as noites, ansiosos, que o contador sumira sem previsão de retorno?

Ahmad sentou-se na cadeira reservada ao contador e se pôs a narrar histórias maravilhosas para o encanto da platéia, que bateu palmas e o parabenizou entusiasmada. O encanto era geral.

O proprietário do café ficou impressionado com a apresentação e logo fechou um acordo com Ahmad: daquele dia em diante, depois da oração do Maghrib (que se faz logo após o pôr-do-sol), o novo contador de histórias recitaria as peripécias de Antara e de outros heróis árabes e poderia imitar os sotaques dos locais por onde seus personagens passavam. “Kífak?” dizia seu herói na Síria, para perguntar como alguém estava. E no Egito, para a mesma questão, perguntava: “Izáiak?” Já no Kuait dizia “Shlônak?”.

Ahmad tinha um grande amigo que nascera na cidade de Bagdá, no Iraque, e por isso era chamado de Al-Bagdádi (o bagdali). Ele adorava as hitórias de Antara e não faltava nunca ao café para ouvir Ahmad contar as aventuras de seu ídolo favorito.

Certa noite, Ahmad narrou um episódio sobre o conflito entre os Bani Abas, a tribo de Antara, e os Bani Amara, seus inimigos mais famosos. Durante uma batalha descrita com emoção pelo contador de histórias e acompanhada com atenção pela platéia, Antara era capturado e feito prisioneiro pelos Bani Amara.

Como de costume, o contador interrompeu a história no auge da narrativa prometendo ao público ansioso que relataria o final daquela saga no dia seguinte. Al-Bagdádi foi embora transtornado, sem conseguir parar de pensar no destino de Antara. Caminhou pelas ruas estreitas de Damasco, angustiado, e decidiu voltar para casa. Quando sua mulher lhe deu as boas-vindas, com o sorriso de sempre, ele a ignorou e recusou a comida que ela preparara. “Estou sem fome, sem sede e sem sono. Não quero nada”, disse-lhe. Enquanto revirava na cama e o tempo se arrastava, minuto a minuto, Al-Bagdádi pensava no que poderia fazer para libertar Antara.

No meio da noite, levantou-se, trocou de roupa e foi até a casa de seu amigo, o contador de histórias, com o objetivo de salvar Antara. Bateu na porta com força enquanto gritava: “Como é possível que você consiga dormir tranqüilamente depois de ter jogado Antara atrás das grades? Pelo amor de Deus, acorde já e o liberte. Não consigo pregar o olho sabendo que Antara foi detido por seus inimigos. Se o problema for o dinheiro, não se preocupe. Vou lhe pagar o que o café lhe paga no dia-a-dia. Ou até mais, se você exigir".

Ahmad abriu a porta e percebeu que seu amigo estava mesmo desesperado. É claro que resolveu continuar a história exatamente de onde havia parado. Ele contou como Antara derrotou todos os seus inimigos, recuperou os bens de sua tribo e ainda salvou sua amada, Umm Kalthum.

Al-Bagdádi soltou um profundo suspiro de alívio, como se tirasse um imenso peso do peito, e agradeceu Ahmad de todas as formas, com todos os salamaleques possíveis. Quando fez menção de pagar o amigo como havia prometido, Ahmad recusou o dinheiro e disse: “Saiba, Al-Bagdádi, que eu também não conseguiria dormir sabendo que Antara estava acorrentado. Agora ele está livre! Livre como um pássaro e ao lado de seus familiares e amigos, pronto para novas aventuras!”. Os dois amigos se abraçaram, e Al-Bagdádi retornou para casa com a consciência tranqüila e com bastante fome, agora que todas as suas angústias haviam se acabado.

Depois de comer pão com azeitona e homus, a pasta de grão-de-bico que tanto apreciava, dormiu ali mesmo na cozinha, tomado pelo sono atrasado. Na manhã seguinte, acordou de bom humor e atrasado. Pediu desculpas à esposa por causa da forma como a tratara no dia anterior e lhe contou o final feliz das peripécias de Antara. Sua esposa o perdoou e os dois foram passear no Suq al-Hamidia, o grande mercado de Damasco onde se encontra de tudo: tapetes, roupas, temperos, perfumes, incensos e... muitas histórias.

Autor: Paulo Daniel Farah

As duas moças bonitas como melancias


Logo na introdução do conto, onde há a descrição da aldeia onde viviam as duas moças, lembrei de uma idéia presente em muitas tradições: a fartura como felicidade de um povo.

Também me lembrei de um fato curioso que me aconteceu em relação à MELANCIA.

Fui participar de uma seleção para uma empresa na qual sempre almejei trabalhar, pelo simples fato de que seu endereço era, nada mais e nada menos, no centro empresarial do Jardim São Luís, a referência local de sucesso profissional.

Pois bem. Eu, com meus 17 anos, fui submetida a vários testes psicológicos típicos de seleções de RH, como exercícios de lógica, dinâmicas e, é claro, uma redação! Aí é que entra a MELANCIA, pois na redação fora pedido que o candidato dissertasse sobre uma fruta que gostaria de ser.

Pensei, pensei e escolhi a... MELANCIA! Justifico-me. Esta fruta é para mim a que mais oferece dádivas em fartura para o homem, com muita água, polpa e sementes. Então, logo relacionei toda essa fartura com o meu potencial a ser dedicado à tal empresa.

Resultado: não fui selecionada para a vaga. Matutei durante anos sobre qual teria sido meu erro e sempre culpava a MELANCIA!

Hoje em dia tenho uma hipótese embasada na crítica de nossa visão de mundo ocidental e capitalista. Ao se deparar com meu perfil, entende-se, mulher jovem negra e moradora da periferia que cercava o "forte empresarial", o selecionador logo relacionou minha vontade em ser MELANCIA com futuros problemas para a empresa...

Provavelmente, para ele, toda essa minha "fartura", principalmente de sementes, representaria muitas licenças-maternidade!

A mulher da pedra


Sabe aquela história que os pais têm mania de contar para passar sabão na gente? Pois é, essa é mais uma delas. Sempre que eu e minha irmã brigávamos, minha avó sempre vinha com uma dessas “historietas”. Hoje vou contar a história da “A mulher da pedra”.[1]

Acho que todos conhecem o romance “Éramos Seis”, de Maira José Dupré, pois bem, em minha casa éramos duas dúzias. Entre viúvas e primas, uma família extensamente feminina e “confabuladora”. De tanto confabular de uns e de outros sempre havia entre nós, irmãs e primas, um arranca rabo diferente, escondido de nossas mães e tias, é claro!

Quando isso acontecia, dava uma dor de ouvido danada. Era um festival de palavras com caveirinhas, cobrinhas e uma porção de características iguaizinhas as de desenhos animados. Eu ouvia todos eles! E confesso, depois dos quinze, repeti-los era uma delícia.

Certo dia, minha avó, que Deus a tenha, pegou minha irmã e minha prima de jeito. E eu, como sempre, que estava só de telespectadora, entrei no rolo. A diferença de idade entre mim, minhas primas e irmãs era escandalosamente grande, sendo assim, não tinha jeito. Eu tive que crescer com aquele bando de adolescentes com crises de mulher. Bom, voltando, vovó chegou e levou todas nós para o quarto e começou a boa e velha ladainha. A história que vou contar é uma delas.

Certo dia, uma mulher, aparentando suas carregadas quatro décadas, estava lavando as roupas de suas patroas no riacho quando em prantos confessou para sua comadre que não agüentava mais tanto desafeto entre as pessoas que mais amava. Todo dia, era uma “brigaiada” danada dentro de casa. Naquelas brigas fervorosas e carregadas de desafetos, sempre um de sua família caía doente. Quando não era ela, era o mais novo. Quando não era o mais novo, era o mais velho. Quando não, até as crias adoeciam!!! Uma semana as galinhas não botavam, na outra era os coelhos que tinham um piriri. Era um verdadeiro “só por Deus”!

Sua comadre, compadecida de seu fardo, parou. Na verdade tudo pareceu ter parado diante de um lamento tão profundo e verdadeiro. As águas daquele pequeno rio pareciam chorar junto com aquela mulher. Não ventava e as folhas secas, que sem pudor algum caíam com vento ou sem ele, não caíam mais. Diante daquelas duas mulheres, uma compadecida com a dor da outra, formava-se uma imagem digna de um quadro. Entre uma rocha e outra, as marcas de sabão construíam desenhos em suas encostas. Era uma cumplicidade digna de uma poesia.

Mas nem tudo na vida é um caso perdido, e a solução veio com um nome: Ynae. Dona Ynae era uma anciã muito respeitada por aquelas bandas. Suas feitas eram bastante conhecidas nas redondezas. Sua fama era grande! Os barões de café da região mandavam vir buscá-la para realizar suas benzeções. Ela fazia parto, fazia “reza brava”, benzia e até curava espinhela caída. Não havia mal que não curasse e bem que não fizesse que seu resultado não fosse reconhecido e divulgado aos quatro cantos das redondezas. Diziam que ela já era uma senhora centenária. Mas não havia, em sua cabeleira, um único fio branco sequer para comprovar tal teoria.

Solução apontada, aquelas mulheres trataram de deixar a vida prosseguir. Secaram seus prantos. Arregaçaram as mangas e foram novamente às labutas da vida. Ensaboando e esfregando os cueiros e lençóis brancos de linho. As folhas voltaram a cair e o sol a pino e quente anunciava a hora de quarar.

De volta para casa, não tardou a chegar logo em seguida a Dona Ynae. Sua comadre mais que depressa já havia relatado para a santa senhora todos os infortúnios que aquela mulher estava passando. Das desgraças que ocorria em sua casa e do desgaste que vinha sofrendo toda a sua família.

Ao entrar naquela casa simples e de poucos pertences, a benzedeira, olhando lentamente ao seu redor, disse: “Deixa, fia, tudo pra trás. Na sua ida, leva contigo somente o que tiver inteiro. Nada pela metade. Nem mesmo aquela pedra que enfeita sua sala. Nada, nadinha. Somente a famia”. Dizendo isso, fechou os olhos e fez uma oração. Lenta e demorada. Com sua expressão de dor, chorou baixinho e pediu, talvez aos seus santos da terra mãe, talvez ao Pai. Quem sabe?

Aceitou com muito carinho um copo d’água, num copo de barro faltando uma beira, e com olhar de reprovação olhou para o objeto, como quem diz “esse também fica”. Agradeceu. E logo em seguida aconselhou: “Bota fia, bota todo o seu povo numa carroça, segui caminho e não olhi pro que tá deixano”. Sem ponderar essa velha senhora repetiu enfática: “E num leva de jeito nenhum aquela pedra”.

Após as orações, a família seguiu em paz durante alguns dias. Enquanto isso, todos da casa se preparavam para partida. Entre os preparativos para o recomeço estava a seleção do que iria ser levado: quase nada. Há muito aquela família vivia em pé de guerra. A cada briga era uma louça, um artigo de luxo, perdia uma alça ou lascava uma pintura. A cada pontapé, quebrava-se uma cadeira ou uma mesa. A cada discussão, uma panela caía no chão e amassava. Eram, realmente, poucos os objetos que seriam transportados. Mas o maior de todos, aquela mulher havia, à tempo, salvo: a sua família.

No dia da partida, a carroça, já pronta, com poucos pertences e muita esperança, a jovem senhora não seguiu o último conselho e sem pestanejar olhou para trás. Gelada e sem palavras, ela não conseguia crer no que via. Segundo os antigos, a imagem é da ruína humana, da miséria, da desgraça e degradação. Mas a imagem que ela via era de uma velha senhora, maltrapilha, suja, toda mafonhanhada, carregando uma pedra, correndo e gritando: “Espera eu, espera eu”!

Márcia Adão, 18/05/07


[1] Curso de contos árabes e africanos maio/2007

Lançamento do Livro "Punga"


"manchei de preto a página branca
quebrando as barreiras invisíveis
invadi esse espaço que finge ser livre
rabisquei interrogando e cheio de exclamação
se somos tantos! onde estamos todos?
entre parênteses e cheio de reticências
colchetes tranca revolta em garrancho
página branca oprimi letras pretas
pra não deixar de ser rascunho
e ter sempre dentro de si
um ponto final"
"Enfoque Subjetivo" - Akins Kinté

O texto acima faz parte de "Punga - literatura negra", uma coletânea de poemas de Elizandra Souza e Akins Kinté. O livro foi organizado autores e pela Edições Toró. Com ilustrações dos artistas negros Bylla, Coyote e Marco.

O lançamento do livro acontece dias 16 e 22 de maio, no Sarau da Cooperifa e na sede da Ação Educativa.


16/05
Horário: 21h
Onde: Sarau da Cooperifa - Rua Bartolomeu dos Santos, 797
Jardim Guarujá - Zona Sul
(Estrada do M'Boi Mirim, atrás da Igreja do Piraporinha)
Telefone: 5891-7403

22/05
Horário: 19h
Onde: Ação Educativa - Rua General Jardim, 660
Vila Buarque - Centro
(Próximo à estação República do metrô)
Telefone: 3151-2333

Café com farinha

Na verdade, seria até uma lista considerável de quitutes e sabores que me religam a sentimentos da infância: bolo de fubá, amendoim cozido, cuscuz, batata doce, pipoca, etc.

Mas há algo que hoje me faz recordar o quanto heróica e sábia é minha mãe.

Nestes dias, para ser mais preciso no curso de contos africanos e árabes, no dia 28 de abril de 2007, quando se falava das lembranças afetivas em respeito aos alimentos, a Nilda falou da segurança que os alimentos ou o momento das refeições nos traz.

Lembrei-me de uma época em que minha mãe nos dava café com farinha, devido à escassez de alimentos em casa. No faltava o arroz e feijão, mas sabe aquele lanche da tarde em que a família (neste caso eu, meus irmãos e minha mãe) partilhava em frente à TV?

Então, neste momento minha mãe entrava com sua criatividade e nos ensinara a comer farinha e tomar café juntos, diz que fazia muito isto na cidade de Inhambupe – Bahia, quando ainda era criança, e que sua mãe também lhe ensinara. Nossa!!! E como parecia um lanche da tarde maravilhoso!!! Pois, transformava o simples em algo tão gostoso, que nem parecia apenas um café com farinha.

Além desta maravilhosa sensação, vinha um sentimento de proteção que somente as mães sabem dar, não desmerecendo meu pai que se esforçava muito em trazer alimento para dentro de casa.

É incrível como alguns gestos podem trazer uma sensação tão boa.

Café com farinha, o meu lanche de tantas tardes, trazia-me paz e segurança.

Edson Silva de Jesus, 09/05/07

Memórias Polvilhadas

Não era gosto de dia-a-dia, e sim de dias especiais. Tão especiais que até dá para contar nos dedos.

Férias escolares com direito a viagem! Acho que foram três no máximo, longas viagens de duas noites e um dia e muitas paradas em cidades pequeninas e aconchegantes.

De São Paulo a Sergipe, muitas expectativas se acumulavam: encontro com a única avó ainda viva, paisagem de secura, memórias de mãe retirante...Viagens pontuais, mas extremamente providenciais.

A cada parada um novo ar, um novo sotaque, novas lembrancinhas. Mas havia um gosto que era comum a todas: o POLVILHO! Da saída de São Paulo, ainda em Aparecida do Norte; passando por Minas, de onde provavelmente ele se espalhou; até chegar ao Nordeste, ele vai dando o gosto à viagem...

Apesar de degustar muitas outras delícias e gostos estranhos ao meu paladar após a chegada em Poço Verde - SE, de buchada de bode a umbunzada, foi o leve sabor do biscoito de polvilho que ficou.

Só depois soube de minha avó paterna mineira. Talvez dela tenha herdado esse gosto, justamente quando ia de encontro à avó nordestina!

Quando em minha terra natal, o ato de experimentar biscoito de polvilho remete a lembrança de encontros esfusiantes e despedidas dolorosas, que não se repetiram muitas vezes, entre minha mãe e minha avó.

Só depois vim perceber minha fissura pela mandioca, e por todos os produtos derivados dela, inclusive o polvilho. Hoje penso que, degustar o biscoito de povilho durante a viagem de encontro de minhas raízes, também pode simbolizar o (des)enraizamento da mandioca, matéria-prima minha.

O mais curioso é que a primeira história que consta em minha memória, contada pela professora ainda no prezinho, é sobre o surgimento da mandioca! Mas esta eu conto depois....

Um babalaô me contou

Foto: Ferrez

Um babalaô me contou:

"Antigamente, os orixás eram homens.
Homens que se tornaram orixás por causa de seus poderes.
Homens que se tornaram orixás por causa de sua sabedoria.
Eles eram respeitados por causa da sua força,
Eles eram venerados por causa de suas virtudes.
Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram.
Foi assim que estes homens tornaram-se orixás.
Os homens eram numerosos sobre a Terra.
Antigamente, como hoje, muito deles não eram valentes nem sábios.
A memória deste não se perpetuou.
Eles foram completamente esquecidos;
Não se tornaram orixás.
Em cada vila, um culto se estabeleceu
Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio
E lendas foram transmitidas de geração em geração, para render-lhes homenagem"

Fonte: Lendas Africanas dos Orixás – Pierre Fatumbi Verger

Essa história de memória de alimentos é mesmo impressionante!


Essa história de memória de alimentos é mesmo impressionante!

Finalmente vou contar a minha. Entre tantas tive que escolher uma, mas antes quero dizer que aqueles bolinhos de chuva que mamãe fazia eram interessantes porque nós ficávamos achando a forma de um objeto qualquer ou de um animal a cada bolinho que mamãe colocava no prato.

E tem outra memória: sempre que ela ia fazer tutu de feijão, nós (eu e meu irmão) pegávamos na mão e apertávamos para fazer bolinhos em forma de tatu.

Essas memórias são mesmo de fazer encher os olhos de lágrimas pois bate uma saudade daquela época! Até posso deixar uma sugestão para o “dia das mães”. Que tal no encontro de domingo, dia 13, para recordar essas lembranças? Claro que não se pode esquecer do presente!

Mas a memória que eu reservei é bem legal. Acho!

Quando eu era pequeno (uns 8 anos, mais ou menos), minha mãe adorava me dar ovos de codorna. Todo dia eu tinha que comer um, cozido, é claro ! E por trás disso, tinha algo interessante. Todo dia, ela me pedia que eu fosse recolher os ovinhos no galinheiro das codornas (tínhamos umas 6), mas antes eu tinha que alimentá-las. Acho que era um jogo.

Bom, não pára por aí: ela ainda dizia que os ovos eram para me deixar inteligente na escola. Se todo dia eu comesse um ovinho, ficaria mais inteligente. Acho que havia outro jogo dela, porque ela dizia que eu tinha que estudar, ler o caderno, prestar atenção na aula, essas coisas, para o ovo fazer efeito. E eu acreditava! Não sei o que era certo, só sei que funcionava.

O pior vem agora.

Um dia em que nasceram 4 filhotinhos de codorna, perguntei à minha mãe se eu poderia brincar com elas e ela, que parecia brava mas no fundo era muito carinhosa, disse que sim, desde que eu não as machucasse.

Então, eu as trouxe para o sofá e fiquei brincando. Não sei o que pôde ter acontecido, acabei machucando uma delas. Minha mãe ficou verde de raiva. Pegou uma vara que chamava de vara de marmelo – não sei onde ela achava, parecia que tinha uma plantação. Essa vara, quando ela batia, doía que só !

Eu que queria ser mais esperto, saí correndo. Entrava pela porta da cozinha e saía pela porta da sala e ela atrás, parecia brincadeira de pega-pega. Mas que nada, era sério mesmo !

Minha mãe foi mais inteligente que eu (acho que ela comia 2 ovos por dia !), e fechou a porta da cozinha, me encurralou. Aí....

Não sei porque, hoje eu adoro ovos de codorna. Há quem diga que ele faz outros efeitos; não sei, só sei que gosto.

Juvenal Domingos, 05/05/07

As coisas gostosas que minha avó fazia


Quando lembro do passado, sempre vem à minha mente as coisas gostosas que minha avó fazia, e a viagem de trem que fazíamos para visitar a bisa. Ela morreu aos 108, já estava um pouco esclerosada, mas durinha.

Um dia ela deu carreira atrás de mim com uma vassoura e ficou um tempão embaixo do pé de manga esperando eu descer. Também lembro que ela varria o terreiro, com sua vassoura de galhos, às 5h da manhã, religiosamente.

O que eu gostaria de trazer, de verdade, eram os beijus feitos no forno da casa de farinha. A casa era arrendada de um fazendeiro vizinho para torrar farinha porque minha avó ia para a roça 2 vezes por ano, julho e dezembro, e meus tios combinavam e colhiam um lote de mandioca para fazer farinha e beiju seco. Esses beijus alimentavam os seus 12 filhos.

Mesmo sendo criança eu participava de todo o processo. Aliás, todo não porque meus tios não deixavam as crianças arrancarem os pés de mandioca porque deixávamos a raiz dentro da terra. Então, na hora de descascar a mandioca , nós fazíamos a “meia sola” e as mulheres, com as mãos mais limpas, faziam a segunda parte. Depois da mandioca toda raspada, era transportada para a casa da farinha , onde era ralada. Era preciso muito cuidado, tive um tio que perdeu o dedo na máquina. Após colocar a mandioca ralada na prensa, as mulheres aparavam a água em bacias. Nesse dia, nós dormíamos na casa de farinha envolvidos neste trabalho. Eram tantas histórias!

Pela manhã, recolhiam as bacias. A tapioca se concentrada no fundo e a água que estava por cima era jogada fora. Com as mãos, soltavam a tapioca que estava concentrada e, após uma secagem no chão do forno, começava-se a assar os beijus que seriam servidos com um café quentinho.

Essas são as lembranças mais gostosas das minhas férias na roça. Como não tenho os beijus, decidi trazer as broas de milho que minha avó fazia para tomar com café, ela não gostava de pão. “Não tem sustância”, dizia . Quando havia beiju, ela fazia as broas e na falta dela, era farinha com feijão logo pela manhã.

Lembro ainda que a vó não gostava que eu ajudasse, meu sonho era poder modelar aquelas broas, no entanto ela nunca deixava, dizia que era coisa de adulto, assim como ela não deixava nem eu pegar na colher de pau para mexer o doce de goiaba vermelha, pois ela dizia que se duas pessoas mexessem o doce desandava.

Desandar? Que palavra esquisita! Ficava pensando o eu significava isso, mas não questionava, ficava quieta no meu canto porque acreditava em tudo que a vó falava e esperava ansiosa pelas broas e o doce de goiaba.


Cristina Maria de Jesus Lima, 28/04/2007

Elizandra e Elizângela arrancavam mudubim

Morávamos no interior da Bahia, numa cidade pequena. Todos da nossa família moravam na área rural e quando as férias de julho chegavam, era época da colheita do amendoim.

Íamos passar as férias na casa dos nossos avós ou da nossa tia. Mas tínhamos que acordar cedo, junto com os adultos para ir “arrancar mudubim” – era assim que chamavam para colher o amendoim. Não íamos juntas não, era uma semana para cada uma.

Eram muitas as novidades. Tudo o que aprendíamos na escola levávamos para a roça. E para saber se tudo o que diziam na escola era verdade, perguntávamos para o nosso avô. Por exemplo, sobre o orvalho nas folhas, ele disse que eram lágrimas do céu. Achava que era por isso que tinha neblina, mas não entendia o porquê da fumaça ao amanhecer.

O amendoim sempre fez parte da nossa vida, e na infância foi muito mais presente. Tenho lembrança de quando o meu pai vendia amendoim cozido nas feiras das cidades vizinhas. Uma de nós sempre ia com ele para ajudar. Adorávamos! Era um bom pretexto para passearmos.

Elizângela e Elizandra Batista de Souza, 28/04/07

Márcia Adão descobre a história: SOMBRAS DA CIDADE



Era uma negra moça ainda, uns 34 anos, mais ou menos. E andava por aí, ao léu, vivendo de esmolas. Não era muito certa do juízo ao que diziam.

Contudo, possuía de seu, um colchão e um filho de cinco anos. Colchão que era só trapo voando e tripas de capim saindo pra fora. Quanto ao filho, diabrete incorrigível, preto feito peixe, era o terror da molecada, das vidraças e dos jardins públicos e particulares.

E aquela mãe negra, moça ainda, 34 anos mais ou menos, andava por ai, ao léu, vivendo de esmolas, o colchão às costas, gritando o nome do filho, diabrete de cinco anos, que descia de um balaústre e atravessava a rua, num relâmpago, a frente de automóveis velozes, pra puxar, pelo rabo, o angorá dorminhoco de uma janela.

- Filhiiiiiinho! Venha cá, meu filho!

Era um peregrinar, por essas ruas de meu Deus, desde as primeiras horas do dia. Colchão às costas feito mochila de soldado, escola encardida pendente do braço, as roupas em frangalhos, macilenta, sossegada, os olhos como que olhando pra dentro, aquela mãe, moça ainda, colhia por esmola, aqui, um pedaço de pão; ali, algumas laranjas;acolá, uma moeda; mais adiante, um desaforo....

Não era muito certa do juízo, coitada. E se não tinha palavras com que agradecer o pedaço de pão, as laranjas ou a moeda, também não tinha boca pra responder ou íntimo pra sentir ofensas. As suas palavras, a sua boca, o seu íntimo, tudo, tudo que dispunha, resumia-se naquele nome que era um poema santo a transformar em ouro os trapos do seu destino.

- Filhiiiiiinho! Venha cá, meu filho!

E a noite descia sobre a cidade. A jovem mãe, no entanto, só tomava conhecimento do reinado da Lua ao ouvir a voz do filho:

- Mamãe. Quando é que se dorme hoje?

Ela estancava surpresa. Ué...E procurava com os olhos, uma árvore, uma construção, um canto de parede.... E estendia o colchão, que era uns farrapos. E deitava-se, aconchegando o filho junto aos seios.

- Tadinho! Judiação, não é? Batendo rua o dia inteiro... Bi, bi, bi... Quem é que tem um filhinho mais bonito? ...

E dormia. Ao sereno, ao vento, à chuva...

Certo dia, lá ia aquela mãe, preta, maltrapilha, o colchão às costas, a sacola de esmolas no braço e o filho à frente, saracoteando, atirando pedras, escorraçando os cachorros e gatos de luxo das janelas, batendo nas crianças finas de gente rica, trepando nas grades, falando nomes feios. Um completo capetinha. Nada o intimidava. Nem a cara feia dos homens; nem a dentuça dos policiais de coleiras registradas. Talvez nem ouvisse aquela voz doce chamando-o carinhosamente:

- Filhiiiiinho! Venha cá, meu filho!

E ao atravessar a rua na disparada, é colhido, em cheio, por um caminhão. Corpo magro, levezinho, foi atirado a uma distância de vinte passos. Estava morto.

Foi um alvoroço. O chofer nem teve tempo de sair do carro. Em poucos momentos viu-se cercado de gente – homens, mulheres, crianças – ameaçando-o, mostrando-lhe os punhos cerrados...

Uma menininha de cor de rosa, muito corada, desvencilha-se da pajem entra correndo, em casa e com a voz embargada pelo soluço, abraça-se com uma bela senhora:

- O Filhinho, mamãe!

Devia ser uma louca aquela negra. Estava no meio da rua, ante a multidão boquiaberta debruçada sobre o cadáver ensangüentado de um menino. E falava baixinho, carinhosa:

- Tadinho! Judiação não é? Batendo rua o dia inteiro....Bi, bi, bi, bi .... Quem é que tem um filhinho mais bonito?

Bolinhos de Chuva

Quando nos foi sugerido trazer um lanche que tivesse alguma importância afetiva, de imediato me veio à lembrança os bolinhos de polvilho que meu pai fazia.

Quando criança, ele nos acordava aos domingos com seus bolinhos, ninguém conseguia ficar na cama com aquele cheirinho vindo da cozinha.

Meu pai é de família mineira de 15 irmãos. Todos eles sabem fazer esta iguaria, as outras gerações também já aprenderam e estão passando a receita para frente...

A caminho do curso, encontrei duas colegas que ficaram muito felizes em saber que eu trazia os tais bolinhos pois, da mesma forma que eu, elas que também são de famílias mineiras, têm boas recordações dos bolinhos e suas infâncias.

É muito importante que cada de nós possa resgatar as memórias e histórias de nossas famílias. Histórias que fizeram parte da nossa criação e que servirão de alicerce para o resto de nossas vidas e dos nossos filhos.
Suzi de Aguiar Soares, 28/04/07

As duas moças bonitas como melancias


"...Era uma aldeia como as outras, onde as vacas tornam os homens ricos, mesmo na tristeza. É lá que moravam duas moças grandes e bonitas: duas amigas. Elas eram tão bonitas e tão redondas quanto uma melancia.Essas duas moças eram muito sossegadas e trabalhadoras. Costumavam preparar a quatro mãos o gunji para fazer um molho gostoso, bem consistente. Elas, que nunca tinham conhecido um rapaz de perto, nasceram rosadas como todas as crianças da África, antes de adquirirem a linda pele negra e luzidia. A beleza delas era tanta, que diziam que um feiticeiro nômade tinha deixado seus dois olhos em algum canto da aldeia, para admirá-las enquanto percorria a selva...."

In: PINGUILLY, Yves. Contos e lendas da África. São Paulo : Companhia das Letras, 2005. p. 165-6.





“Conta-se, ó rei, que havia no Cairo um jovem mercador que era belo, elegante, e que havia se consagrado completamente ao estudo. Um certo dia, ele lia um livro sentado à porta quando uma jovem passou por ele, bela como a lua brilhante ou como a gazela que foge na campina. Aproximou-se dele, ergueu o véu que lhe cobria o rosto e disse...”
(Mi’at Layla Wa Layla –Tradução: Paulo Daniel Farah)

Conto do Magrebe

MAGREBE – Região que compreende Marrocos, Argélia e Tunísia, no norte da África.

Os árabes chegaram à região nos séculos VII e VIII e levaram consigo a língua e a religião. Até hoje, afora o árabe, esses países falam o berbere, uma língua indo-européia, ao passo que o árabe é uma língua semítica.

Antigamente, os habitantes da África do Norte chamavam-se líbios, que mais tarde, em bases geográficas, passaram a ter várias denominações: númidas a Leste, mouros a Oeste. Os seus descendentes chamam-se kabilas na Argélia e na Tunísia, tuaregues no Saara, berberes em Marrocos. Poderíamos reunir todos sob a designação de berberes.


HISTÓRIA DE EL-GHALIYA BINT MANSUR
(soberana dos sete mares e dos pássaros)

Laila el-Ghaliya bint Mansur morava no fundo do sétimo mar; e era uma águia dos mares que a levava ao dorso para atravessá-los Ela mandava em todos os pássaros. Dormia um ano e ficava acordada no outro. Fazia seu leito com metade da cabeleira e cobria-se com outra metade para dormir. Era virgem. Seu palácio tinha sete portas. A águia tinha suas chaves e guardava o palácio.

Um dia, um humano tomara conhecimento de todas essas coisas espantosas, apaixonou-se loucamente pela soberana dos sete mares e dos pássaros e disse:

- Àquele que me fizer encontrar essa maravilha, darei todo o ouro e toda a prata que tenho.

Um pássaro, entre os grandes pássaros, ouviu aquilo e disse:

- Vá à margem do mar com teu cavalo; sacrifica-o à águia dos mares e verás o que verás.

Mais que depressa, o homem fez o que lhe foi aconselhado; todos os pássaros chegaram e regalaram-se do sangue do cavalo, e depois exclamaram:

- Por que esta oferenda?
- É porque desejo que a águia dos mares me transporte ao palácio de El-Ghaliya bint Mansur, disse o homem.
- Eu te transportarei – disse a águia dos mares -, mas é preciso que me prepares sete refeições de carne e sete tubos de salgueiros cheios de sangue de cavalo para comer durante a viagem.

O homem preparou as provisões e montou sobre as espáduas da águia. Nutriu-a durante a viagem, fê-la comer e beber ao fim de cada mar, e quando a águia dos mares bebeu sete tubos de sangue e comeu as sete refeições de carne, encontraram-se diante da sétima porta da soberana.

A águia abriu as sete portas e pôs o homem num jardim maravilhoso, cheio de flores e frutos, e conduziu-o ao quarto de El-Ghaliya bent Mansur . A rainha dormia. Estava deitada sobre a metade de sua cabeleira e coberta por outra metade.

O homem não resistiu ao amor que o abrasava e engravidou-a. Depois tornou a partir como viera, sobre as asas da águia dos mares.

Quando seu sono de um ano acabou, a soberana dos sete mares e dos pássaros percebeu que o seu ventre havia se desenvolvido consideravelmente durante o sono. Então chamou a águia dos mares, guardiã das suas sete portas, e interrogou-a até que ela confessou sua culpa contando o que se havia passado.

Como ela reinava também sobre os afaríts e os djinns, os gênios, ela esfregou seu anel e convocou-os. Num piscar de olhos, seu palácio encheu-se de um exército às suas ordens.

Ela lhes disse:

- Vede todos, eu que vivo retirada, no fundo do mar, engravidei durante o meu sono e quero saber quem é o culpado para vingar-me.

Logo o exército se organizou: a águia dos mares, que tinha aberto as portas, partiu na frente para dirigir a comitiva. Chegaram a uma ilha e aí encontraram belas casas e belos jardins. A águia dos mares disse:

-Foi aqui que o homem montou nas minhas asas.

Então os djinns e os afaríts sopraram sobre a ilha uma tempestade assustadora que derrubou todas as árvores e fez cair todas as casas. Os habitantes assustados gritavam:

- Por quê? Por que isto?

Mas o exército de afarits e de djinns continuou a demolir tudo, depois a rainha adiantou-se e disse:

- É para vos punir por terdes violado a minha solidão e me haverdes feito crescer o ventre.

Então o culpado adiantou-se; era mais belo que o sol e gritou:

- Ó rainha, pune a mim somente, pois sou o único autor desse crime. Eu te amo e, se não tivesse te possuído no teu leito no fundo do sétimo mar, morreria de dor. Mata-me, pois, ó soberana dos sete mares e dos pássaros, dos djinns e dos afarits.

Mas El Ghaliya bent Mansur também era jovem e bela e não ficou insensível à beleza do seu amante. Assim, respondeu-lhe:

- Temos mais o que fazer na vida do que nos matarmos. Vem cuidar daquela que fizeste mãe.

Então a tempestade parou de soprar; o exército dos afarits e dos djinns deu meia-volta sob as ordens da rainha e daquele que ela vinha de escolher para marido e companheiro.

Por que o sol e a lua foram morar no céu

Há muito tempo, o sol e a água eram grandes amigos e viviam juntos na Terra. Habitualmente o sol visitava a água, mas esta jamais lhe retribuía a gentileza. Por fim, o sol quis saber qual o motivo de seu desinteresse e a água respondeu que a casa do sol não era grande o bastante para que nela coubessem todos com quem vivia e, se aparecesse por lá, acabaria por despejá-lo de sua própria casa.

- Caso você queira realmente que eu o visite, terá que construir uma casa bem maior do que a que tem no momento, mas desde já fique avisado de que terá que ser algo realmente muito grande, pois o meu povo é bem numeroso e ocupa bastante espaço.

O sol garantiu-lhe que poderia visitá-lo sem susto, pois trataria de tomar todas as providências necessárias para tornar o encontro agradável para ela e para todos que a acompanhassem. Chegando em casa, o sol contou à lua, sua esposa, tudo o que a água lhe pedira e ambos se dedicaram com muito esforço à construção de uma casa enorme que comportasse sua visita.

Quando tudo estava pronto, convidaram a água para visitá-los. Chegando, a água ainda foi amável e perguntou:

- Vocês têm certeza de que realmente podemos entrar?
- Claro, amiga água – respondeu o sol.

A água foi entrando, entrando e entrando, acompanhada de todos os peixes e mais uma quantidade absurda e indescritivelmente grande, incalculável mesmo, de criaturas aquáticas. Em pouco tempo a água já se encontrava na altura dos joelhos.

Quibes fritos com coalhada seca

Quando eu ia à casa de minha avó paterna, quando ela ainda era forte e ativa, eu via o "pacotinho" de pano branquinho amarrado à torneira da pia... pingando.

Era uma delícia quando ela servia, juntamente ao pão "Pitta", pequenos quibes fritos na hora, a coalhada seca...

Hoje, meus filhos já a misturam com outros temperos: azeite, sal e orégano.

Simone Elias, 17/03/07

Pão-doce às terças-feiras

Lembro-me da primeira série do ensino fundamental. Eu tinha 8 anos e fui morar com a minha avó e meus tios para poder freqüentar a escola, uma vez que meus pais moravam em um bairro afastado, sem acesso à escola.

No bairro em que eu morava com meus avós ainda não havia padaria. Então, todas as terças-feiras, meus avós pegavam a charrete e íamos à feira. Era ali que ela comprava os “pães-doces” para eu levar de lanche na escola. Os primeiros eram macios, mas, com o decorrer dos dias, os últimos iam ficando duros. Mesmo assim, eu os comia e esperava a próxima terça-feira.

Regina Aparecida da Silva, 17/03/07

Curso de Contos Africanos e Árabes

O curso foi criado com o objetivo de estimular a leitura de contos de regiões pouco estudadas na escola, como a África e o Oriente Médio. A primeira experiência contou com o apoio do Programa de Ação Cultural (PAC), da Secretaria de Estado da Cultura, e foi desenvolvido para educadores e jovens da região do Jd. Ângela, em São Paulo.

Em todas as culturas podemos encontrar a presença da tradição oral, das histórias que, passadas de geração para geração, constituem importante mecanismo de preservação da memória, da história e da identidade dos povos. Essas histórias revelam modos de agir, pensar, viver, dramas cotidianos, sentimentos e angústias humanas.

É uma proposta que estimula jovens, educadores e interessados, a entrarem em contato com histórias que, muitas vezes, são mais próximas de sua realidade do que as presentes na literatura européia. Ao proporcionar o contato com histórias tradicionais, o curso contribui para que os participantes se apropriem da prática de ler e contar histórias.


Informações:
Tel: (11) 9251 9895
E-mail: : nyldarodriguez@uol.com.br , pauloili@uol.com.br

Organizadores:
Paulo Daniel Farah - Coordenador Geral - é professor doutor no programa de graduação e de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor de O Islã, Glossário de Termos Islâmicos e ABC do Mundo Árabe, entre outras obras, e BIBLIASPA - Biblioteca/Centro de Pesquisa América do Sul/Países Árabes.

Nilda Rodrigues - Coordenação Executiva – Jornalista, é consultora de Comunicação em organizações não governamentais e empresas, coordenou a Oficina de Jornalismo Experimental da ONG Papel Jornal, a organização do I Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental e editou a revista Com Ciência Ambiental, entre outros

Participação especial
Neide Almeida - Socióloga, mestre em Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas pela PUC-SP. Trabalha há 20 anos com ensino de leitura e produção de textos, especialmente na formação de professores. Atualmente integra a equipe que coordena o Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil, atua como pesquisadora pelo Cenpec e desenvolve pesquisa autônoma sobre Literatura Negra


Orientadores Convidados
Álvaro Santos - Professor de Dança
Anicet Lopes Bakusha - Educador e contador de histórias
Cristiane Maia - Educadora licenciada em Letras
Cristina Rodrigues – Contadora de histórias, educadora
Flavia Nathalia – Professora de dança, estudante de letras
Giba Pedroza – Contador de histórias, escritor
Luciana Dias - Divulgadora, estudante de sociologia
Marlene Bergamo – Fotógrafa